Sonia Regina - Prefácio de 10 Rostos de Poesia Lusófona
















10 rostos de poesia lusófona *


PREFÁCIO


A poesia - a forma mais sublime de expressão -, de fácil memorização, prescindiu da escrita até o século XVIII, quando esta explodiu com o surgimento dos romances ingleses.



“consta-se que, ao pronunciar a palavra pela sétima vez, o jovem poeta se enamorou. e caiu nos braços da cadeira, adormecido, subjugado pelo lento amadurecimento do encantamento que ele próprio verteu. há quem diga que tal se deveu a factores estranhos ao próprio acto poético: as nuvens navegavam em direcção contrárias às leis da física reclamando a sua condição de transparência e irrealidade. a chuva subia e não descia, tentando aspirar à divindade e substituindo-se a aqueronte na passagem para o lado errado da existência”


Assim diz Jorge Vicente no Poema VI do Livro dos Antigos. Talvez, dos versos das obras do passado, talvez do paradigma cartesiano que varreu o singular e a diferença, condenando tudo à separação: corpo, alma e emoções, sujeito e objeto, ser humano e natureza, interioridade e exterioridade, o ‘eu’ e o ‘outro’ e assim sucessivamente. Expulsos o subjetivo, a emoção e o desejo como entraves ao conhecimento, o ser humano perdia-se de si mesmo e era condenado a uma solidão terrível.

Poderíamos supor que no seu canto seguinte, o Poema VII do Livro dos Antigos, segue dizendo dessa crise profundamente enraizada no aniquilamento desses sujeitos destroçados por um paradigma científico que os fragmentava até as últimas conseqüências existenciais, criando-lhes uma máscara social para que não soçobrassem no devir do mundo e pudessem buscar a imagem do ‘eu’ em fuga e a cura da doença cognitiva da modernidade, provocada pela negação do olhar e da imaginação.


“o destino nunca se constrói

nem gilgamesh pode encerrar

o seu futuro numa única flor


talvez aquele que suba possa

viver outra vez.”


Jorge Vicente. In: Poema VII do Livro dos Antigos


A tentativa de resgate dessas dimensões subjetivas mais profundas dos seres humanos é expressa nas artes. Presente, esse ‘eu’ da modernidade.


Vazio que se completa

na palavra cheia do tudo e do nada:

a perda...


Delasnieve Daspet. In: Sinais de vida e de morte...


Fraturado, cindido, fragmentado, um sujeito que vive se transformando a reboque de uma época pasma onde reina a incerteza, um sujeito que observa a realidade que se apresenta ora como onda, ora como partícula, e olha para si como num espelho, num mergulhar narcíseo, ao tentar compor um auto-retrato que, na verdade, lhe escapa, dado o movimento perpétuo do devir e a imagem que constrói a partir do olhar do Outro. Um sujeito que procura respostas.


“com uma nova

luminosidade, uma nova utopia

um novo modo de pressentir

aquilo que só cabe aos pássaros”


Jorge Vicente. In: Poema VII do Livro dos Antigos



“Mostro em linhas,

Rabiscos de minh alma

Versos antigos, guardados comigo.”


Delasnieve Daspet. In: Minhas Linhas


Tenta-se explicar como se chegou a ser-se o que se é, busca-se a imagem – que escapole - do que se é. Discursos teóricos e filosóficos como os de Freud, Lacan, Pichón-Rivière, Jung, Winnicott, Bachelard, Foucault, Deleuze, Guattari, Certeau, para citar alguns, estão presentes no pensar a subjetividade e o psiquismo em suas manifestações criadoras nos níveis individuais e coletivos.


“a arte do abandono não é ensinada

e nem sempre há versos à tona”


Sonia Regina. In: nem sempre há versos à tona


E se nos perguntamos “para quê?” e consideramos Platão e a lição do Fédon, reconhecemos que o homem é um ser exilado de seu verdadeiro eu, num movimento em que o Amor (Eros) é a energia que atua como força motriz, impedindo-o de esquecer, movendo-lhe os sentidos para o coração, nutrindo sua alma do que é da sua natureza.


“ à claridade do dia

em cada nuvem macia

aonde Eros se deita

e Hera, feliz, desperta!”


Maria_Petronilho. In: Festa de Gaia



“ E que esse sangue que é o mesmo em cada veia,

Nos assemelhe e nunca mais nos torne sós.”


Luiz Poeta. In: À Tua Semelhança


Mitos, religiões, filosofia: o homem que, em busca do que lhe dê sentido à existência, procura o sublime e o experimenta, através do imaginário, as imagens em movimento...


“peso oculto

como somente o seria

num pássaro quando pousa”


Cissa de Oliveira. In: Numa Folha Ávida



“Por querermos muito,

Por voarmos alto,

Voamos o vôo das águias”


Eunice Mendes. In: A ti, Pablo Neruda


“Como?” - perguntamo-nos. Sem respostas, suspeitamos que através da poiesis, da criação, da representação de desejos e afetos na linguagem e na imagem que narram a sua subjetividade.


“Harmonia sedas crepes e sonhos

Em pontas de pés e braços alados

És poalha de luz envolta em chamas”


Joaquim Evónio. In: O Corpo e a Alma


E é na linguagem e na imagem que habita a subjetividade. É nelas que se inscreve o “eu” poético, é nelas que se escreve o percurso de sua construção.


“a noite pode vir agora

que durmo prendado de ti “


Fernando Oliveira. In: para ti


Perguntar pelo permanente na natureza é como perguntar pelo resultado de uma obra de arte. Não se esgotam o sentido e a interpretação de um poema ou de uma pintura.


“Vós sois a semente

No tempo presente

Desta geração

Vossas mãos cansadas”


Euclides Cavaco. In: Doirada Homenagem


O escritor expressa a realidade que observa, imagina, inventa e interpreta. Questiona-a. E vai além. A realidade é um ponto de partida para ir mais além da compreensão de vida pelo que não é material e depende da relação e das interações, numa autonomia criativa que não separa o conhecer, ser e viver.


“Depois que a paixão passa,

a criatura fica exata e os anjos

inventam de ficar estáticos. “


Cissa de Oliveira. In: Uma Outra História



“E diz à ave que voa

Que nesta linda Lisboa

Teus irmãos velam por ti”


Joaquim Evónio. In: Heróica N´Gola



“esculpindo sinónimos

e criando neologismos

transgride a lei gramatical


simbólico até à exaustão”


Fernando Oliveira. In: paradigmas da poesia


Para ir mais além desse momento em que se atenta à utopia não desgarrada da realidade concreta e da própria ação cotidiana dos sujeitos - impregnada da ação coletiva pelo processo de construção e invenção de cada um, a par do mágico e do sagrado que o racionalismo moderno quis eliminar – o poema diz, pergunta, duvida: incessantemente.


“Segue firme, sem rimas, sem prosa

Segue livre, sempre nova.”


Eunice Mendes. In: Segue



“E te amar dentro da própria solidão.

Tanto espelho em uma casa tão enorme...”


Luiz Poeta. In: Abraç...Ânsias



“Ser português...

É ser diferente... É ter alma Lusíada

É saber estar ausente

E em qualquer lado...”


Euclides Cavaco. In: Alma Lusíada



“o que vale uma mão na mão

quando não se encontram”


Fernando Oliveira. In: intentos balsâmicos


É impossível se verificar a parte deliberada e a inconsciente, ainda que o leitor mergulhe nos subterrâneos da obra através do ‘eu’ poético em busca dos rastros do ‘eu’ do autor.


“Refreia tuas ânsias inquietas...

Poetas fazem parte de uma casta

Maluca... eles nunca traçam metas;

Só fazem poesia...e isto basta.”


Luiz Poeta. In: Critic... Arte



“quisera eu ser teu

quisera que fosses minha

cobiço-te.. cobiça-me”


Fernando Oliveira. In: cobiças


O leitor se projeta na obra, talvez desvelando um pouco da história das idéias do autor, um pouco desse ‘eu’ escrito que se relaciona com os processos sociais. Pressente-os quando se aproximam e se afastam na superfície estética do poema, através do timbre. E ao olhar do leitor é possível que não escape a interação entre a obra literária e a vida social, caso siga esse movimento do ‘eu’ sujeito, líquido e movente, através dos rastros de cunho estético.


“não me interessa a face plástica da estrela

endoidece-me o preço inflacionado do céu

(...)

interessam-me os valores lícitos das colheitas

os canastros repletos de milheiral

o enlace de quatro olhos cúmplices”


Fernando Oliveira. In: afectos e desafectos


Um indivíduo solitário que lê, um indivíduo solitário que cria: a herança da modernidade.


“nas

vertigens agrestes

de uma carícia. Só

os marinheiros amantes

são dignos do vento”


Jorge Vicente. In: Poema


Um individualismo questionado por Stuart Hall. Para ele, a identidade não rodeia um ‘eu’ coerente, é definida historicamente e contextualizada culturalmente. Uma combinação de temporalidades em que o processo histórico flui mais lento do que nas instâncias da sociedade.


“Como se fora canção,

Constrói a terra mais bela

Com tuas mãos de verdade

E as fecundas sementes

Do amor-libertação...”


Joaquim Evónio. In: No Pintcha, Amigo, No Pintcha


Michel de Certeau afirma ser a oralidade indefinidamente uma exterioridade sem a qual a escritura não funcionaria e que, por isso, a voz faz escrever. Segundo ele o indivíduo, por perder seu lugar, nasce como sujeito e então se coloca como produtor da escritura, da demarcação objetiva de um espaço próprio e da construção de um texto que tenha poder sobre a exterioridade da qual foi anteriormente separado.


“Voam rimas peregrinas

por entre os dedos deslizam

num átimo se desenham

onde seria que estavam? ”


Maria_Petronilho. In: Pátria-Mundo


Uma fronteira, esse lugar em que as temporalidades desencontradas adquirem substância em sujeitos sociais, protagonistas, classes, etnias, instituições, mentalidades, costumes, variações lingüísticas - igualmente desencontrados?


“É improvável a vida,

É impossível o riso,

É a incerteza de não existir...”


Eunice Mendes. In: A vida se dissipa, se esvai


Não há como discutir as fronteiras entre o real e a ficção sem trazer à baila a memória e o imaginário. A ficção é uma representação da realidade, um processo criativo submetido ao imaginário que, na obra literária, resgata a diferença latente na aparente semelhança.

E não estamos aqui para compreender e muito menos analisar as nuances da prática escritural dos poetas desta obra, nem a articulação dos mecanismos textuais utilizados por eles. Pretendemos apresentar parte do percurso de suas experiências literárias - poemas que representam e talvez delimitem um lugar de passagem nesse campo em que a imagem de si e a autoria se fazem presentes - e se desfazem - na possível reversibilidade de relações entre o confessional e o ficcional. O ‘eu’ poético é somente circunstancialmente análogo ao autor e, seja qual for a função a que se destina a escrita – informar, aconselhar, exortar, consolar –, o escritor, ao escrever, constrói-se enquanto sujeito.

Com palavras que se derrotam a poesia continuaria adormecida e não dizendo do infinito. Todavia, acorda da delicadeza com uma letra. Ousa, sílaba a sílaba, e viaja.


“não sigo com os pássaros


apenas calo a pedra que testemunhou

a destruição do poema


a essência da palavra

é aquela que o poeta imagina”


Jorge Vicente. In: Poema V do “Livro dos Antigos”


Há viagens possíveis e navegar é preciso. À procura do sentido, no tempo marcado pelas imagens embaralhadas nas horas, minutos e dias.


“Eis-me aqui, uma vez mais,

Plena e vazia

Nua, sem as maldades humanas,

Companheira da mesma estrada.”


Delasnieve Daspet. In: Eis-me...


Somos, todos, um poema em construção: sem limites a não ser a quebra da seqüência, quando o que nos domina é o ritmo.


“O vento pode ser frio

Gelar as águas do rio

E ondular as do mar”


Euclides Cavaco. In: Nas asas do vento


Nele e na imagem o poder das palavras, terras sem fronteiras que têm em algum ponto uma beira. Nela, em sua quietude geradora, de um momento secreto e íntimo com o fogo dos deuses, forjamos as letras.


“com a pulsação das naves

e nenhuma nostalgia

ela se solta


é um sol que vê por dentro

antes de acordar a forma”


Cissa de Oliveira.In: Um sol que vê por dentro


E o poema flui. De um diálogo entre versos e “eus”.


“Quem alguma vez

já ouviu

e sentiu

o feitiço que tu tens,

o poder que tu emanas,

como pode duvidar”


Joaquim Evónio. In: Batuque


Uma obra que reúne poetas de dois continentes através da língua é um enigma sem decifração possível, que diz. Diz de uma caminhada individual e coletiva, real e metafórica. Diz de todos os “eus’ que interagem e circulam nos versos, diz dos seus rostos. Por isso “Dez rostos é um grupo poético e não dez pessoas que participam numa antologia: como grupo poético ele pode ir mais longe, pois o congraçamento é mais prolixo e profícuo.”[1]


Sonia Regina.







[1] Fernando Oliveira


* 10 Rostos da Poesia Lusófona, coletânea de poemas de autores brasileiros e portugueses. Organização: Fernando Oliveira. São Paulo, All Print Editora: 2008.






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